A vida do pecuarista Leci Pereira, de 48 anos, virou de cabeça para baixo desde que a irmã, Lenilda dos Santos, 49, foi encontrada morta em um deserto do Novo México, nos Estados Unidos, no dia 15 de setembro. A auxiliar de enfermagem de Vale do Paraíso, município de 6 mil habitantes em Rondônia, cruzara a pé a fronteira do país norte-americano. Ao não conseguir acompanhar o ritmo do restante do grupo, liderado por um coiote, foi largada para trás sozinha.
A certidão de óbito ainda não foi concluída, mas, ao que tudo indica, ela morreu de sede ao tentar percorrer cerca de 50 km no deserto. Um rastro ao lado de onde o corpo foi encontrado aponta que ela rastejava, já sem forças. A família agora tenta arrecadar R$ 100 mil por meio de uma vaquinha virtual para pagar pelo translado do corpo ao Brasil, onde será sepultado.
Leci foi o primeiro a receber a notícia da morte da irmã. A família se comunicava com Lenilda ao longo do trajeto e estranhou quando ela parou de responder às mensagens. Também acompanhavam a movimentação de Lenilda por localização de GPS do celular e perceberam que ela não saía mais do lugar. Foi aí que Leci desconfiou do pior e pediu a um outro brasileiro do grupo da irmã que chamasse a polícia para ir atrás dela. Mas ninguém o fez, e quando Leci descobriu, ela já estava havia dois dias desaparecida no deserto. A polícia finalmente a encontrou 9 dias depois, sem vida.
De acordo com dados da CBP (Agência de Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA), 47 mil brasileiros tentaram cruzar a fronteira dos Estados Unidos de outubro de 2020 até agosto deste ano. É um número sem precedentes na história e cinco vezes maior que no ano fiscal anterior. Segundo Cesar Rossatto, professor da Universidade de Texas de El Paso e cônsul honorário do Brasil, calcula-se que para cada brasileiro pego na fronteira, outros três passaram sem serem identificados. Ou seja: 200 mil brasileiros teriam entrado irregularmente nos EUA. Ainda segundo Rossatto, 2 mil estão presos aguardando a decisão judicial que concederá a esses brasileiros a possibilidade legal de viver nos EUA ou, na maior parte dos casos, a deportação.
“A movimentação na fronteira dos EUA é uma temperatura da situação geopolítica do mundo”, afirma Rossatto, mencionando a crise no sul global. Segundo levantamento recente do centro de pesquisas americano Pew, o número de imigrantes pegos na fronteira sul dos EUA alcançou em julho o nível mais alto dos últimos 21 anos, em uma crise migratória que teve seu capítulo mais recente em setembro, com a captura de imigrantes haitianos na divisa. Os brasileiros estão em sexto lugar entre as nacionalidades mais registradas na fronteira, segundo números da CBP, atrás de México, Honduras, Guatemala, Equador e El Salvador. Após a construção do muro na fronteira dos EUA, as rotas de quem tenta entrar no país mudaram. Foge-se da fiscalização da imigração, mas em compensação migrantes têm de enfrentar as agruras de percorrer longos trajetos pelo deserto até chegarem a alguma cidade.
De sua casa em El Paso, cidade do Texas que faz divisa com Juarez, no México, Rossatto diz enxergar a fronteira: o muro de 8 metros de altura vigiado por carros da imigração, policiais armados, cachorros, sensores de movimento no chão e helicópteros. “Quem pula o muro já está dentro da cidade. Se ninguém te viu pular, você pode se passar por um morador qualquer. Agora se você vai mais pro meio do deserto, não tem o muro, mas tem que ter perna, água, fora o risco de tomar um tiro de algum racista que detesta imigrante ou dos cartéis de droga. Os riscos são tremendos”, diz o cônsul.
Trajeto no deserto
Foi por El Paso que Lenilda entrou nos EUA pela primeira vez, em 2003, antes da construção do muro, assim como o ex-marido e os dois irmãos. Ela viveu no Estado de Ohio por cerca de quatro anos trabalhando como faxineira até decidir voltar ao Brasil. Apenas um irmão ficou nos EUA, onde vive até hoje. “Sinceramente, eu não teria coragem de fazer isso de novo, e olha que minha rota era mais tranquila do que a dela de agora, caminhei 30 km. Por isso mesmo, implorei para ela desistir da ideia, sabia que ela não teria o condicionamento físico necessário. Você consegue levar um litro de água, então não dá pra beber água, só molhar a boca. Porque se você leva 2 litros, depois de 10 km parece que está pesando 50 kg. A roupa que você leva, vai largando pelo caminho. Você chega com a roupa do corpo, não aguenta carregar mochila”, descreve Leci.
Lenilda trabalhava como auxiliar de enfermagem em dois hospitais da região, em Rondônia, mas o salário não chegava a R$ 2 mil. Durante a pandemia de covid-19, trabalhou na linha de frente. Chegou a pegar o vírus, sem desenvolver sintomas graves. Decidiu que iria aos EUA novamente para conseguir pagar de vez uma dívida de R$ 38 mil, feita para custear a faculdade das duas filhas, estudantes de Direito. A própria Lenilda tinha acabado de terminar à distância a graduação em Enfermagem. “Falei para minha irmã que eu pagaria essa dívida, para ficar quieta aqui, mas ela não aceitou de jeito nenhum”, conta Leci. Lenilda ainda teria tido que pagar 25 mil dólares ao coiote que a levou caso tivesse sobrevivido.
Em abril deste ano, ela havia tentado ir aos EUA pelo chamado cai-cai, no qual a pessoa se apresenta à imigração na fronteira e é detida enquanto aguarda a decisão judicial. Ficou 90 dias presa para depois ser deportada. “Foi horrível. Ela ficou os 12 primeiros dias presa sem tomar banho”, conta Leci. Alguns meses após chegar ao Brasil, Lenilda partiu rumo aos EUA novamente, desta vez pelo deserto. A maioria dos centros de detenção nos EUA são administrados por empresas privadas e recebem verba do governo federal de acordo com o número de presos e a duração da estadia. Segundo Holly Cooper, advogada especializada em direito do imigrante há 23 anos e professora de direito na Universidade da Califórnia, quanto maior a quantidade de detidos e o tempo de detenção, maior o lucro dessas empresas.
“Existe um lobby gigantesco em Washington para que centros de detenção e presídios mantenham essa verba do governo”, afirma a advogada. De acordo com Rossatto, os centros de detenção recebem de US$ 150 a US$ 300 por diária de preso, e a custódia costuma durar de 6 a 8 meses. Depois de perder sua irmã e confidente, como Leci define, ele agora ficou responsável pela mãe idosa e as duas sobrinhas, de quem prometeu cuidar na ausência de Lenilda. Também caberá a ele o pagamento da dívida da irmã, além de resolver os trâmites para trazer o corpo dela ao Brasil: “Realmente ficou tudo nas minhas costas agora, nem sei como lidar com isso”. Há também a demanda da imprensa e as entrevistas quase diárias. “Quero que divulguem o máximo para que as pessoas parem de ir para a América… mas a verdade é que vão continuar de qualquer forma. Não tem como sobreviver no Brasil”, afirma.
De acordo com Cooper, o governo do presidente dos EUA, Joe Biden, manteve grande parte das políticas migratórias do antecessor Donald Trump, como a chamada Title 42. A medida é uma cláusula da Lei de Saúde Pública usada pelo governo para, sob a justificativa de evitar a propagação da covid-19, deportar imigrantes de algumas nacionalidades imediatamente, sem passar pelos procedimentos jurídicos. Segundo Rossatto, ela é aplicada sobretudo a quem vem da América Central e México, que compõem a grande maioria, e não a brasileiros. “O Title 42 é a maior violação de direitos humanos que já vi na minha carreira. Estamos negando a nossa responsabilidade, prevista na legislação internacional, de prover o direito de asilo político neste país”, opina Cooper. A advogada afirma que houve algum avanço na gestão Biden no tratamento dado a crianças desacompanhadas dos pais, a quem não é aplicada a deportação sumária prevista no Title 42.
De acordo com dados da CBP, 133 mil crianças sozinhas foram registradas na fronteira de outubro de 2020 até agosto deste ano, de um total de mais de 1,7 milhão de pessoas que tentaram entrar no país ? 2,5 vezes o número do ano fiscal anterior. No caso de brasileiros, 198 crianças desacompanhadas foram registradas no período. Os menores de idade nesta situação são detidos e depois encaminhados a familiares que vivem nos EUA ou a lares adotivos. “É uma tragédia enorme. São pais devastados sem saber se os filhos vão chegar vivos até a fronteira, mas ainda assim preferem arriscar isso a manter as crianças na situação desesperadora do país de origem”, diz a advogada. Rosatto foi chamado pelo Consulado Brasileiro para atender três crianças brasileiras desacompanhadas detidas na base militar Fort Bliss, no Texas, neste ano. “Eram três brasileiros em um mar de dez mil crianças de outras nacionalidades. É muito triste, uma situação precária.”, conta. “Por sorte, uma enfermeira brasileira que estava lá dentro me chamou para ajudá-los e consegui reunificar todas elas a familiares com sucesso”.
No ano passado, Rossatto também foi convocado para intervir na prisão de uma brasileira, mãe solteira, acusada de tráfico humano. Segundo o cônsul, coiotes ofereceram a ela a viagem até os EUA de graça caso cedesse dois de seus filhos a brasileiros que fingiriam ser os pais para cruzar a fronteira. Pela ordem executiva emitida por Biden em fevereiro deste ano, crianças não podem mais ser separadas das famílias como era feito na era Trump. “Famílias com menores de idade têm a possibilidade de receber um tratamento melhor da imigração, por isso os coiotes quiseram usar as crianças dessa mãe”, explica Rossatto. Segundo o cônsul, a brasileira foi ameaçada de morte caso não entregasse os filhos, e por isso cedeu. Ao chegarem na fronteira, a imigração fez o teste de DNA nas crianças e comprovou a farsa. A mãe chegou no dia seguinte e foi presa. Os filhos foram para um centro detenção. “Ela chorava, gritava na prisão, traumatizada”, conta Rossatto. “Entramos na defesa dela e conseguimos soltá-la para que fique junto com seus filhos nos EUA e responda aos processos imigratórios em liberdade.” // Fonte: BBC Brasil.
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